AUTISMO - TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
24/03/2013 14:50
Autismo
O autismo ainda impõe à ciência muitas perguntas sem resposta. Mas novas pesquisas jogam uma luz inédita sobre as suas causas, o seu tratamento e sobre como funciona a mente dos seus portadores.
O repórter da Revista Abril, R. Cavalcante, escreve:
“Há algo de estranho nas fotos de Daniel. Seja na pose descontraída ao lado da irmã mais nova, Karen, seja com a família no porta-retratos da sala, seu olhar está sempre ausente. É como se ele não estivesse ali. Bem, de certa forma, ele não está mesmo. Até os 2 anos, Daniel não falava. Quando falou, em vez do esperado ‘mamãe’, a primeira palavra que disse foi ‘acabou’, logo após a mãe desligar o vídeo do desenho animado Toy Story. E foi só, por alguns meses. Ele não respondia aos chamados dos pais nem brincava com outras crianças. Ficava horas trancado dentro do guarda-roupa – a sede da sua espécie de planeta paralelo”.
“Parecia que tinham roubado a alma dele”, diz a mãe, a cirurgiã paulista Eliana Steinman. Mesmo sendo uma profissional da área médica, Eliana demorou meses para compreender (e aceitar) o estranho comportamento do filho. Quando soube que Daniel era autista correu com o marido à livraria e comprou tudo o que encontrou sobre o tema. “Na faculdade e nos consultórios de amigos pediatras, o autismo é um problema distante”, diz Eliana. O pai de Daniel, o também cirurgião Antonio Cesar Martini, sabia igualmente muito pouco sobre o assunto. “O autismo, para mim, era coisa de cinema.”
Infelizmente, o distúrbio interpretado por Dustin Hoffman no filme Rain Man é bem mais comum do que se imagina. Até a alguns anos, sua incidência era estimada em um caso para cada 1.000 crianças nascidas. Esse número vem aumentando nos últimos anos, pelo menos em alguns países. Nos Estados Unidos, 1 em cada 500 crianças apresenta sintomas de autismo – uma incidência que já é maior do que a da Síndrome de Down e até mesmo que a do câncer infantil naquele país. Ninguém sabe ao certo quais as causas desse crescimento. A maioria dos pesquisadores acredita que essa “quase epidemia” é apenas a conseqüência de diagnósticos mais precisos que passaram recentemente a identificar como autismo sintomas que antes eram classificados de forma genérica como retardo mental ou esquizofrenia.
A verdade é que ainda sabemos pouco sobre o autismo. Sua cura, portanto, ainda está distante. Descrito pela primeira vez em 1.943 pelo psiquiatra americano Leo Kanner, não existe até hoje sequer um consenso sobre as suas causas. As hipóteses vão de mutações genéticas à viroses e intoxicação por produtos químicos. Daí o autismo ser considerado uma síndrome e não uma doença - ao contrário da doença, a síndrome é um conjunto de sintomas que pode ter mais de uma origem.
No entanto, nem tudo são trevas. A ciência nunca descobriu tanto sobre o funcionamento da mente autista quanto nos últimos anos. É que o aumento de casos diagnosticados e a conseqüente pressão da sociedade está fazendo com que as pesquisas sobre o autismo recebam mais atenção – e mais verbas. Até há bem pouco tempo, sabia-se apenas que os portadores de autismo não possuíam o que os psiquiatras chamam de teoria da mente – a capacidade que temos de entender que existe o “eu” (nossa visão do mundo) em oposição ao “outro” (o mundo visto pela consciência de outra pessoa). Daí a dificuldade que o autista tem de interpretar o estado emocional dos outros, de inferir pensamentos alheios, de prever as reações de seu interlocutor.
“Daniel, hoje, aos 5 anos, ainda tem dificuldade para perceber se estou bem ou mal-humorada. Ao contrário da minha filha de 3 anos, que já sabe usar isso quando quer alguma coisa”, diz Eliana Steinman.
Outros sinais importantes de autismo são distúrbios de comunicação, padrões repetitivos de comportamento e, o mais estranho deles: o desinteresse pelo contato com outras pessoas.
Para entender esse afastamento dos outros seres humanos, pesquisadores da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, vêm investigando por meio de um aparelho de ressonância magnética especial, o que acontece no cérebro de um autista quando ele (a) entra em contato com outras pessoas. Os resultados são surpreendentes: as imagens mostram que, enquanto as pessoas normais usam determinadas áreas do cérebro para reconhecer faces humanas (ou outras) para identificar objetos, os autistas acionam a mesma região para ambas as funções. “Isso explica a falta de reciprocidade no contato humano”, afirma o psiquiatra Ami Klin, da Escola de Medicina da Universidade de Yale.
Além das pesquisas com ressonância magnética, Klin e seus colegas usaram um equipamento parecido com um capacete de beisebol para acompanhar a direção dos olhos do autista diante de uma face humana. O aparelho tem duas microcâmeras de raios infravermelhos que permitem entender melhor como o autista vê o mundo. Uma delas filma os seus olhos, registra os movimentos oculares. A outra grava o que está sendo visto, com a perspectiva do autista. Assim, os pesquisadores vêem, num monitor, o que o autista está enxergando. E o que eles vêem? “Quase sempre eles olham para a boca das pessoas, nunca enquadram os olhos ou o rosto inteiro”, diz Klin.
Um dos resultados da experiência é a confirmação da dificuldade que os autistas têm para interpretar faces humanas. Sem essa habilidade, o convívio social, como não poderia deixar de ser, fica seriamente comprometido. Afinal, como fazer ou manter um amigo se você é incapaz de perceber se ele está feliz ou triste? Se ele está escutando o que você está dizendo ou mesmo olhando para você? Isso sem falar na dificuldade de reparar as segundas intenções, de perceber as entrelinhas de uma frase, as sutilezas e os sentidos implícitos em um gesto, em um modo de olhar.
Uma imagem recorrente dos autistas é a de que, à revelia de suas dificuldades de relacionamento, se tornam gênios. Não é difícil topar nas locadoras com filmes em que crianças autistas decifram códigos secretos de organizações terroristas ou têm um desempenho espetacular em matemática. Na vida como ela é, infelizmente, a história é outra. Cerca de 70% dos autistas têm algum nível de retardo mental, com QI abaixo da média. Ou seja, menos de três em cada dez autistas possuem uma boa capacidade de aprendizado. Esses autistas, definidos pelos especialistas como de “alto nível”, são enquadrados dentro da Síndrome de Asperger.
Quase simultaneamente à catalogação do autismo por Leo Kanner, nos anos 40, o psiquiatra vienense Hans Asperger descreveu casos de autistas que não tinham grandes problemas de comunicação e de aprendizado. São essas pessoas que estão ajudando a ciência a entender como a mente autista funciona.
É o caso da americana Temple Grandim. Com seu PhD em Psicologia, Temple escreve livros e artigos que contam em primeira pessoa como é ser um autista. Na sua autobiografia Uma Menina Estranha, escrita com a ajuda da jornalista Margaret Scariano, ela explica por que quase sempre sentia repulsa ao toque e reagia intensamente a odores e ruídos repentinos. Para os pais, a rejeição ao toque é um dos comportamentos autistas mais dolorosos. “É difícil aceitar essa indiferença ao carinho”, diz a paulista Maria Aparecida Oliveira, mãe de Jefferson, um autista de 13 anos. Jefferson é um bom exemplo dos paradoxos enfrentados por um autista de “alto nível”. Ele começou a ler pouco antes de completar 4 anos, mas só escreveu aos 8. Fala inglês, tem um excelente ouvido para a música e uma memória privilegiada. Ao encontrar um funcionário da TV Cultura de São Paulo, Jefferson mandou um abraço para quase toda a equipe técnica da emissora, dizendo os nomes um a um – ele os conhecia de ler os créditos que sobem na tela ao final do programa. Em compensação, Jefferson tem dificuldade para entender um sentimento tão comum como a tristeza que sentimos diante da morte de alguém de quem gostamos e tem problemas para escrever redações no colégio – não consegue abstrair.
O curioso é que essa dificuldade que Jefferson tem para criar cenários e imaginar situações pode estar estritamente ligada à sua aguçada capacidade de reter informações e lembrar-se delas depois. Após testar a memória de 24 pessoas, oito delas autistas, pesquisadores da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, concluíram que os autistas foram superiores em algumas provas. O motivo? A dificuldade que eles têm de perceber o contexto transforma-se numa vantagem para gravar coisas específicas, como nomes e números. Entre as pessoas normais geralmente acontece o contrário: ao ouvir a palavra mar, por exemplo, o cérebro faz automaticamente uma série de associações indiretas: oceano, sol, verão, férias, praia, biquínis... Enfim, aciona todo um universo associado ao contexto da palavra, admite conotações etc. Já os autistas não associam mar com verão ou com praia. “O problema é que a contextualização é crucial em quase todas as formas de aprendizado”, afirma David Beversdorf, co-autor da pesquisa da Universidade de Ohio. Ele diz que um grande mérito desse trabalho é tentar identificar habilidades específicas que facilitem a colocação dos autistas no mercado de trabalho.
Um dos maiores pesadelos dos pais de autistas é a perspectiva de ver seus filhos dependerem de outras pessoas o resto de suas vidas. “Minha maior preocupação é com o futuro”, diz a pedagoga paulista Livânia Trivilin, mãe de Vinícius, um autista de 8 anos. Vinícius passa metade do dia numa escola especial da Associação dos Amigos do Autista (AMA), em São Paulo. Lá, as professoras e as orientadoras passam horas tentando estimulá-lo a participar de atividades com outras crianças – enquanto ele parece mais interessado em permanecer junto à janela com o olhar perdido no horizonte. Apesar de perceberem uma evolução no comportamento do filho, os pais de Vinícius – como quase todos os familiares de autistas – não sabem se ele um dia terá uma profissão ou mesmo uma vida considerada normal. Até lá, a maioria dos pais tenta de tudo: terapia, natação, sessões com fonoaudiólogos. “Tudo depende do nível de autismo da criança”, diz a psicóloga Ceres de Araújo, que trabalha com adolescentes autistas em São Paulo há mais de 10 anos. Ela diz que não adianta querer forçar um autista a entrar numa universidade, por exemplo, se esse caminho terminar sendo ainda mais frustrante para ele. “O diploma é mais importante para quem? Para os pais ou para o autista?”
Uma coisa é certa: quanto mais cedo a criança for estimulada, maiores as chances de independência no futuro. Daí a importância do diagnóstico precoce. Antes de a criança completar 2 anos de idade, já é possível perceber sintomas do autismo. Mesmo assim, muitos pais demoram para identificar (ou admitir) que seu filho ou filha é portador de autismo. “Acho que, no fundo, esperava que fosse outro problema”, diz a pediatra paulista Rita Kisukuri, mãe dos gêmeos autistas André e Alex, hoje com 5 anos. Apesar de desconfiada do problema, ela só obteve o diagnóstico final do autismo quando seus filhos completaram 3 anos.
Ø Para saber mais:
Na livraria:
Uma Menina Estranha
Temple Grandim, Companhia das Letras, São Paulo, 1999
Um Antropólogo em Marte
Oliver Sacks, Companhia das Letras, 2000 (cap. 6 e 7)
Autismo Infantil
José Salomão Schwartzman (organizador), Memnon Edições Científicas, São Paulo, 1995
Na Internet:
Associação dos Amigos do Autista
www.ama.org.br
www.autism.org