A Clínica do Existir

04/02/2013 16:01

 

A Clínica do Existir
Entrevista com Nichan Dichtchekenian, por Fernando Savaglia
 

Nichan Dichtchekenian

A clínica do existir

Há décadas lecionando e atuando como terapeuta, o psicólogo Nichan Dichtchekenian tem seu trabalho apontado como referência dentro da perspectiva filosófica conhecida como Fenomenologia Existencial


Por Fernando Savaglia

 

Ele tomou contato com a Fenomenologia Existencial no final dos anos 60. Há quatro décadas, leciona a disciplina em universidades e atua como terapeuta, utilizando conceitos heideggerianos em sua abordagem clínica.

Carismático e comunicativo, Nichan Dichtchekenian construiu uma carreira que hoje é destacada como referência no que se conhece como Psicologia Fenomenológica. Ele assegura que a influência do trabalho de sua mulher, a falecida filósofa Maria Fernanda Dichtchekenian, foi determinante no direcionamento de sua trajetória com’’’’o professor e como psicoterapeuta.

De acordo com o psicólogo, Maria Fernanda, na época, ainda jovem, estremeceu o curso de Psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), ao defender em 1970 sua tese de doutorado, baseada na fenomenologia do filósofo Edmund Husserll.

"Percebemos que o conhecimento que ela nos trazia era algo absolutamente diferente, crítico e até contrário ao conhecimento tal como estava estabelecido para nós na época, focado principalmente na Psicanálise e no Behaviorismo".

Dichtchekenian explica que, ainda que houvesse muita consistência no que estudava, a Fenomenologia passou a fazer parte de sua vida principalmente por ele sempre ter sido uma pessoa interessada na reflexão filosófica. Analisado durante anos por Solon Spanoudis (1922-1981), fundador da Associação Brasileira de Daseinsanalyse (veja quadro a respeito), o psicólogo define a Fenomenologia como a restauração de uma pergunta crucial para o entendimento do lugar do homem dentro de sua própria existência.

"Nossa cultura esqueceu a pergunta sobre o 'ser', pois considerou resolvida a questão. O 'ser', de maneira equivocada, é classificado como tudo aquilo que pode ser mensurável, palpável, determinado, útil, etc. O 'ser', na verdade, não pode ser esgotado em nenhuma destas possibilidades, embora cada uma delas pertença ao ser".

Para Dichtchekenian, "fazer Fenomenologia é a tarefa de se aprofundar na especificidade das coisas tal como elas se mostram". Mesmo após tantos anos lecionando e atuando como terapeuta, o psicólogo garante que sua motivação para responder as perguntas relativas à existência é constantemente renovada, "nada na Fenomenologia está estabelecido”.

A sensação que tenho é que ela está sempre começando. Diariamente me sinto chamado e convocado na tarefa de ser fenomenólogo".

Acompanhe a seguir uma entrevista com um dos mais reverenciados profissionais desta que é considerada a mais filosófica dentre todas as linhas de psicoterapia.

 

Psique - O que diferencia a abordagem da Fenomenologia Existencial em relação a outras linhas de psicoterapias?

Dichtchekenian - Meu trabalho está ligado com a existência da pessoa, de que maneira essa pessoa dá conta de seu existir, suas limitações, medo da morte, angústias, etc. Como você lida com aquilo que determina você? O que você faz com aquilo que caracteriza você? Que tipo de decisões você toma ou não toma? Qual o sentido de você ser como você é? Porque se você é deste jeito é porque você realiza algo deste jeito, você está alcançando uma presença na vida. 

Meu trabalho como terapeuta é primeiro acompanhar a pessoa no modo dela ser e convidá-la a se apropriar de quem ela é. Eventualmente, até poder alcançar outras maneiras de ser, mas o principal é estabelecer um contato mais rico possível consigo mesmo e compreender que aquele sentido não é uma negação das possibilidades, mas uma nova possibilidade de ser.

 

Psique - O que pode atrapalhar este processo de apropriação?

Dichtchekenian - Muitas coisas. O sofrimento vem quando temos uma relação muito distante de nós mesmos. Sofro por ter uma relação alienada, me guio por critérios absolutamente impessoais para me escutar, me ver e me tocar. Importante frisar que ninguém faz isso por imaturidade ou ignorância de se conhecer. Fazemos isso por ser uma alternativa que encontramos na existência para nos protegermos da angústia de sermos nós mesmos. Minha distância em relação a mim não nasceu de uma ignorância. Esta distância foi se estabelecendo a partir do ter de lidar com o fato de eu ser o protagonista da minha vida. Uma terapia é um convite à pessoa estabelecer essa apropriação no sentido mais pleno, nos acontecimentos mais simples e cotidianos da vida.

 

Psique - Como a Fenomenologia lida com as psicopatologias?

Dichtchekenian - São modos de ser. O fato de as pessoas viverem aquilo que identificamos ou descrevemos como neurose, não a tira da vida, mas a situa, isso sim, de uma determinada maneira. Mas se a neurose restringe a realização de suas possibilidades, é necessário compreender isso junto com o analista e entender o porquê de a pessoa agir assim. Isso não quer dizer que assinamos embaixo algo como "sou um neurótico feliz". É importante analisar por que a pessoa só pode viver dessa maneira e a partir daí se preparar para experimentar novas maneiras de ser.

 

Psique - Como trabalhar, então, com pacientes que padecem de angústias profundas, como, por exemplo, aquela que a psiquiatria chama de transtorno do pânico?

Dichtchekenian - Para mim o pânico é claramente o prenúncio de uma transformação e, é claro, com todo o terror que essa transformação pode gerar. É o anúncio de uma nova possibilidade de ser, no sentido em que efetivamente essa nova possibilidade anuncia um risco real que é o de eu abandonar a familiaridade em relação a quem eu já sou. É um amadurecimento para uma nova possibilidade. Esse amadurecimento não é percebido a não ser pela ansiedade. O pânico surge quando esse amadurecimento leva à determinada direção e tira você de algo familiar, seguro e conhecido.

 

Psique - Se olharmos por esta ótica, até o conceito de psicopatologia perde sua força...

Dichtchekenian - Não acredito que exista nada em nós que de repente comece a funcionar de uma maneira inadequada ou deficitária. Existe uma grande diferença entre atribuir aos seus processos psíquicos a responsabilidade de seus problemas e você se responsabilizar pelas suas escolhas. Nosso trabalho como psicólogo é o de oferecer condições para que a pessoa consiga entrar num contato mais legítimo com ela mesma. Acredito que um dia será possível se discutir ferrenhamente com essa dimensão determinadora da existência, com a qual o saber do século XIX e XX se voltou para o homem. Pode parecer uma pretensão, mas essa nova visão já está se anunciando na maneira, por exemplo, como podemos conceber o pânico.

 

Psique - Mas nossas angústias também acabam nos caracterizando como humanos...

Dichtchekenian - Sim, e nos caracterizam como o algo que é nada. A angústia é o nada presente, ela nos mostra que tudo que fazemos é uma escolha. Que podemos perder tudo do que temos tanta certeza que nos pertence. Nossa existência é expressão de escolhas, esforços e confiança. Nossa existência não é como a de uma planta que não pode deixar de ser uma planta. Essa existência, a da planta, é maravilhosa, mas é miseravelmente maravilhosa. A nossa, construímos a cada dia, mesmo que optemos por não construí-la, destruí-la, etc. Esta é nossa característica mais humana.

 

Psique - Usuários de drogas estariam em busca de se livrar destas escolhas?

Dichtchekenian - Droga é algo com que a humanidade sempre vai ter de lidar, porque enquanto formos humanos e, portanto angustiados, a droga vai servir como um recurso que temos para aliviar o desespero de nos percebermos como humanos. Ela vai adiar aquilo que o tempo todo me chama para ser humano. Quem usa as drogas vive na proximidade, não conscientemente e não elaborada, das questões que estão chamando o indivíduo para se apropriar da própria vida. A droga é usada como uma maneira de adiar o processo de apropriação.

 

Psique - Como a Fenomenologia Existencial lida com o conceito da subjetividade na análise do ser humano?

Dichtchekenian - A subjetividade não é um termo adequado para se descrever o homem. A subjetividade, sob o ponto de vista da Fenomenologia, é uma distorção da verdadeira natureza e da relação do homem com o mundo. Subjetividade supõe que já exista uma estrutura com certo grau de auto-suficiência no individuo que o caracteriza como tal. O que existe realmente é uma abertura do homem para... O homem é disponibilidade para os outros, para o mundo, para as inúmeras possibilidades.

 

Psique - Como você analisa o grande número de filósofos que nos últimos anos vem fazendo aconselhamentos em consultório nos mesmos moldes dos psicoterapeutas?

Dichtchekenian - Vejo isto com bons olhos. Um bom filósofo pode fazer uma espécie de convocação para uma reflexão das questões existenciais que a pessoa está vivendo. Um profissional que tenha maturado sua reflexão e por ter conquistado este amadurecimento nas relações com as pessoas pode fazer um excelente trabalho.

 

Psique -Muitos psicoterapeutas apontam a depressão e a ansiedade como as principais psicopatologias de nossa época e apostam que o vazio existencial será o grande desafio num futuro próximo...

Dichtchekenian - Faz muito sentido falarmos de vazio existencial nos tempos em que vivemos. Há várias formas de olhar para o tema. Uma delas é que todo o sentido de existir de cada um de nós nos foi retirado e substituído pelas relações sociais padronizadas. Essa configuração tirou de nós a oportunidade de experimentar e de se apossar da vida. O ser humano de várias maneiras percebe isto. Uma pessoa, quando escreve um roteiro como o do filme Matrix de alguma forma percebe ou tem uma pré-visão dos desdobramentos daquilo que já se apresenta agora. Isto nos remete a sua pergunta do pânico. Esse pânico é vivido por pessoas que estão hipersensibilizadas sobre sua própria condição e estão de alguma forma antevendo a morte ou algo apocalíptico.

Fazer Fenomenologia é a tarefa de se aprofundar na especificidade das coisas tal como elas se mostram.

 

Psique - E como lidar com este vazio existencial?

Dichtchekenian - É importante se autenticar este vazio. A única coisa que pertence ao indivíduo acometido desta sensação é justamente o vazio. E o que vai salvar a pessoa é o fato de ser um vazio disponível e pronto para receber novas possibilidades. É importante que a pessoa sinta no terapeuta um parceiro na busca pelo preenchimento deste espaço.

 

Psique - Tomar consciência desse, como o senhor chamou, "social padronizado" e das angústias que suas conseqüências geram nas vidas das pessoas, por si só não pode levar as pessoas a assumirem uma postura niilista perante a vida?

Dichtchekenian - Este despertar permite que as pessoas sejam elas mesmas. Falo muito em aulas, que precisamos valorizar nosso "errado". O nosso inadequado é o que nos salva. Você não se encaixa? Que ótimo! Isto quer dizer que você tem um modo de ser todo seu. Talvez ainda não tenha encontrado um modo de articular este jeito de ser, mas o fundamental é que você não se permitiu encaixar nos esquemas previamente oferecidos. O que está errado não é o conteúdo do que se oferece, mas o fato daquilo se oferecer de maneira prévia, como se já fosse a resposta antecipada às minhas necessidades e solicitações. Muito do "vazio" dos nossos tempos tem origem aí, no fato de eu ser obrigado a aceitar algo só porque este algo recebe uma chancela oficial de que aquilo me traz felicidade.

 

Psique - Muitos analistas dizem que uma das fontes da angústia é a máscara que usamos como interface nas relações humanas. A Fenomenologia parece ter uma visão diferente dessas máscaras...

Dichtchekenian - A máscara pode ser a maneira inicial de ensaiarmos uma nova possibilidade que se apresenta. Ela nunca é usada por acaso, tanto é que não é percebida, por exemplo, no teste do Rorschach. No ponto de vista fenomenológico, a projeção é o anúncio de uma possibilidade minha que ainda vejo no outro. Acredito que a máscara tenha um sentido parecido. Enquanto uso a máscara, faço um trato com esta possibilidade de ser. Faço de conta que eu sou aquilo que a máscara representa, mas com o decorrer do tempo tenho a oportunidade de incorporá-la e até me transformar no que ela é.

Existe uma diferença entre atribuir aos processos psíquicos a responsabilidade dos problemas e responsabilizar-se por eles.

 

Psique - Como o senhor vê a espiritualidade?

Dichtchekenian - Vejo como uma realização natural da transcendência humana. Essa transcendência, para mim, é a capacidade de se tocar e se interessar por coisas e pessoas que não são iguais a você. Coisas que te emocionam, assustam, constranjam, etc. Para a Fenomenologia não somos psiques encapsuladas a partir do qual o mundo é uma versão exterior de uma interioridade. O mundo é absolutamente real, existe além de mim e eu faço parte dele. Mas o mundo tem uma consistência em si mesmo com o qual desde o início do meu existir eu estabeleço contatos de familiaridade, estranheza, amor e agressão. A espiritualidade é o amadurecimento da transcendência. É divinizar o seu saber de algo que não é você.  Para mim, espiritualidade é a promoção dos entes neles mesmos. É a institucionalização desta dimensão própria do homem de se espantar ao se deixar tocar por aquilo que não é ele mesmo.

 

Psique - Em um de seus artigos o senhor afirma que "qualquer aspecto do mundo percebido pelo homem pode ser enfrentado e compreendido na sua especificidade"...

Dichtchekenian - O que quis dizer é que o mistério da existência é inesgotável e basta nos abrirmos para desfrutarmos disto. Cada aspecto do mundo tem um segredo para contar para cada um de nós e nossa obrigação como indivíduos é a de escutar humildemente o que as coisas têm a dizer e transmitir aos outros. Cada um de nós pode reduzir nossa experiência na vida como um cumpridor de uma tarefa biológica ou social, mas até isso é uma escolha. Quando você acha que não está escolhendo, você na verdade não está é suportando ser o autor da vida que você está vivendo.

 

Psique - Na Psicologia Analítica,’ a individuação seria o "tesouro" a ser alcançado que poderia garantir uma melhor estrutura afetiva ao ser humano dentro de sua existência. Existe algum processo similar proposto pela Fenomenologia?

Dichtchekenian - A versão fenomenológica do processo de individuação diz que o amadurecer no mundo é encontrar a versão mais simples do que é ser você. Quando você encontra aquilo que o faz vivenciar o mais genuíno seu, existe um amadurecimento pelo fato de você já ter encontrado o seu lugar. Esse lugar é onde você cumpre a tarefa de se colocar disponível para observar, olhar e escutar o que as outras coisas dizem sobre as possibilidades de ser. Para a Fenomenologia não existe um objetivo final, mas uma disponibilidade de estar aberto para ir ao encontro de novos acontecimentos.

 

Psique - Como um terapeuta existencial encara a morte?

Dichtchekenian - A morte é o anúncio e o fim de uma possibilidade de ser. É o único acontecimento real, pois é irreversível. A partir dela tudo muda, nada pode voltar a ser como era. A morte é o que transforma tudo como era antes em outra coisa. Nós vivemos algumas mortes em nossa vida. A morte obriga você a se colocar disponível para viver algo novo que o está solicitando.

 

Psique -Muita gente considera os textos de Heidegger muito herméticos. Existe algum objetivo nesta suposta aridez na sua escrita?

Dichtchekenian - Sim. A produção dos textos filosóficos de Heidegger tem como característica não deixar nenhuma dúvida sobre o sentido das palavras. Existe um cuidado em que cada frase ou palavra seja entendida de tal forma que o sentido seja só aquele que ele nos quer transmitir. O meu entendimento não pode ser diferente do seu que não pode ser diferente do de outra pessoa e assim por diante.

 

Terapias existenciais

Impressionado com a leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger, o psiquiatra suíço Ludwig Binswanger concebeu uma maneira de aplicar o que assimilou na obra do filósofo na busca de compreender e aliviar as angústias de seus pacientes.

Foi a partir do conceito do "dasein" (em português "ser-aí") - que na visão de Heidegger é aquilo que caracteriza o homem na sua essência - que surgiu a Daseinsanalyse.

Posteriormente, Biswanger rebatizou sua terapia como Antropologia Existencial. Coube ao também suíço Medard Boss o aprimoramento do método terapêutico sugerido por Biswanger.

Boss esteve no Brasil na década de 1970 a convite da ABD (Associação Brasileira de Daseinsanalyse) que teve no psiquiatra Solon Spanoudis um de seus fundadores. Além da Daseinsanalyse, é possível apontar várias outras linhas de terapias ditas existenciais.

A Logoterapia, do psiquiatra austríaco Viktor Frankl, a existencial humanista norte-americana, a análise existencial britânica e a psicoterapia existencial sartreana, entre outras, vem ganhando destaque nos últimos anos inclusive no Brasil. 

 

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